quinta-feira, 14 de maio de 2009

Mais uma sobre FIEL


É difícil saber como reagirá diante de "Fiel" um torcedor de outro clube ou um espectador indiferente ao futebol. Mas é provável que ele se comova com essa estranha paixão que leva milhões de pessoas de todas as classes e idades a fazer do sofrimento um valor positivo.

(José Geraldo Couto, Folha de S. Paulo, 9/abr/2009)

Regra ou discricionaridade?


Economistas são familiarizados com a discussão sobre a adesão a regra ou discricionaridade na condução da política monetária por parte de bancos centrais. Mas duas colunas do dr. Contardo Calligaris em edições recentes da Folha de S. Paulo (26/mar/2009 e 14/mai/2009, respectivamente) levam a discussão para o campo do Direito. Interessante!


Crimes insignificantes
É viável uma sociedade em que preocupações morais substituem as normas jurídicas?

A Folha de sábado passado (reportagem de Felipe Seligman e Sofia Fernandes) noticiou que, ao longo de 2008, o Supremo Tribunal Federal julgou 14 casos em que considerou "insignificantes" os crimes cometidos: as ações penais deveriam ser arquivadas e os culpados que estivessem presos deveriam ser soltos.
O que é um crime insignificante? Primeiro, o que foi roubado ou destruído deve ser uma bagatela, ou seja, pouca coisa (claro, a bagatela não pode ser definida de vez: o que é pouca coisa para mim pode não ser para você).
Segundo, ajuda o fato de que o crime tenha sido perpetrado, como notou o ministro Carlos Ayres Britto, por "extrema carência material". Por exemplo, seria insignificante roubar o básico se você e sua família passam fome. O ministro Celso de Mello acrescentou que o sujeito assim isentado não deve apresentar "nenhuma periculosidade social" (isso, claro, é uma previsão).
A questão não é concordar ou não com as decisões do STF: existem crimes que nos parecem pouco relevantes e pelos quais achamos injusto que um cidadão seja encarcerado -sobretudo, muitos acrescentarão, considerando o bando de criminosos bem mais relevantes que andam livres pelas nossas ruas. Isso sem contar a superlotação do sistema carcerário.
O que me interessa é que as 14 decisões do STF constituem uma espécie de marco. Imagino facilmente um juiz de primeira ou segunda instância ponderando alternativas mais morais do que propriamente jurídicas: "Se encarcero este homem, o que acontece com suas crianças? Ou então, se eu o encarcero, será que faço do crime seu destino, enquanto seu comportamento foi excepcional, ditado por circunstâncias extremas?". Há mesmo situações que a lei não pode contemplar e que pedem uma avaliação "humana", quase afetiva. Mas, visto que as decisões emanam do Supremo, é como se, desta vez, a preocupação moral alterasse ou substituísse a norma jurídica. Isso é uma novidade. Devemos festejar? A verdade é que não sei.
Os psicólogos conhecem os dilemas que Lawrence Kohlberg inventou, nos anos 70, para medir o desenvolvimento moral das pessoas. O primeiro deles podia ser resumido assim: "É errado roubar remédio se seu filho está doente e você não tem recurso algum?". Hoje, o STF parece responder que se trataria de um erro insignificante. Para Kohlberg, essa resposta tem uma qualidade moral superior àquela que diria que, necessidade ou não, bagatela ou não, roubar é proibido.
Agora, Kohlberg media a qualidade do pensamento moral, ou seja, a complexidade do foro íntimo das pessoas. Ele não pedia que, na hora de dar suas respostas, os sujeitos testados apreciassem a legalidade das condutas avaliadas - por uma razão simples: em nossa cultura, a esfera pública da legalidade é separada da esfera privada da moral.
Já faz alguns séculos que a ideia de justiça se desvinculou da ideia de legalidade: o que nos parece justo não coincide necessariamente com o que é legal. Podemos achar, sem contradição, que uma lei é injusta; e nosso tribunal interior é mais importante, para nós, do que o veredicto de uma corte. Essa maneira de pensar é um dos traços gloriosos da modernidade ocidental.
Na reportagem que citei, Britto declara que o STF recorreu a uma distinção entre o formal e o material: algo pode ser crime formal, mas não material (o concreto é mais importante do que a letra). A consequência vem a seguir: o ministro também declara que, no caso do crime de bagatela, foi afastada "a ilicitude do caso". Ou seja, a consideração moral concreta acabou com a ilegalidade abstrata do ato.
Muitos especialistas em segurança pública recearão as consequências dessa posição, pois vários estudos mostram que o crime se expande lá onde as simples infrações não são reprimidas: se é tolerado que a gente urine nos cantos, então haverá quem assaltará -como se a "generosidade" da lei comprovasse sua ausência ou seu sono. Mas, fora essa consideração, as decisões do STF revelam um impasse específico da modernidade. Uma sociedade regida pelo foro íntimo seria, provavelmente, mais justa do que uma sociedade governada pela letra da lei. Mas será que ela é possível? Será que somos capazes disso? Será que somos homens à altura dessa esperança?
Essa pergunta é, por sua vez, um dilema moral - ao qual, obviamente, não sei responder.

Valores positivos
A modernidade não é moralmente "decadente'; ela é rica em valores que merecem ser defendidos

Em 5 de maio, o jornal "The Guardian" deu uma notícia que, aqui no Brasil, passou desapercebida ou quase. O Home Office (equivalente ao Ministério da Justiça) do Reino Unido publicou uma lista de 16 pessoas que seriam barradas caso tentassem entrar no país. Oito são islamistas pregadores de ódio étnico e terrorismo -nenhuma surpresa. Mas eis que eles aparecem em companhia de:
* Stephen Donald Black, cidadão dos EUA, grande sacerdote do Ku Klux Klan, fundador de "Stormfront", um fórum on-line para quem defende a supremacia da raça branca;
* Eric Gliebe, cidadão dos EUA, neonazista;
* Mike Guzovsky, cidadão dos EUA e de Israel, grande admirador de Baruch Goldstein (o qual, em 1994, em Hebron, matou 29 muçulmanos que estavam rezando numa mesquita);
* Fred Waldron Phelps, pastor batista, e sua filha Shirlei, cidadãos dos EUA, pregadores de uma cruzada contra os homossexuais (para eles, a Aids, as guerras e as catástrofes naturais são punições divinas pela permissividade sexual de nossos tempos);
* Artur Ryno e Pavel Skachevsky, cidadãos russos, skinheads, conhecidos por filmarem ataques contra minorias étnicas (imigrantes, armênios etc.) e disponibilizar os filmes na internet para o "prazer" de seus acólitos (ambos atualmente na cadeia pelo assassinato de duas dezenas de pessoas);
* Michael Savage, cidadão dos EUA, radialista que passa seu tempo no ar fomentando raiva étnica, religiosa e política (Savage ficou na minha memória por defender a ideia de que autismo infantil é manha de criança que não levou todos os tabefes que merecia).

A própria ministra do Interior, Jacqui Smith, explicou a razão pela qual decidiu publicar a lista dos indesejáveis: "Se você não pode viver segundo as regras, os padrões e os valores que contam em nossa vida, nós o excluiremos de nosso país e, mais importante, tornaremos públicos os nomes dos que barramos".
Adoraria assistir a um debate entre Jacqui Smith e um juiz da Corte Suprema dos EUA; seria, no mínimo, esclarecedor.
Provavelmente, um juiz da Corte Suprema dos EUA, mesmo conservador, diria que não podemos nunca perseguir uma opinião ou uma fé. Eventualmente, podemos perseguir os atos criminosos que essa opinião estimula, mas não a opinião como tal, visto que a lei que nos governa garante a liberdade de pensar e de se expressar.
Tudo bem, mas a decisão de Jacqui Smith não é tanto jurídica quanto moral: a liberdade de pensar e de se expressar, bem antes de ser uma lei, é um valor positivo de nossa cultura, ou seja, um valor que devemos defender assim como defenderíamos nossa fé ou nossa tradição se vivêssemos numa sociedade tradicional ou religiosa.
Na hipotética posição do juiz, a modernidade ocidental poderia ser uma sociedade sem valores positivos; ela seria regida apenas por leis, que, no caso, permitem que cada um pregue o que quiser -inclusive que ele pregue contra as leis que governam nossa convivência. Na posição de Smith, contrariamente ao que afirmam os apóstolos de nossa "decadência moral", a modernidade é uma sociedade rica em valores positivos. Nela, o respeito por esses valores é condição básica para ser cidadão; e o desrespeito é a marca do inimigo -assim como, numa sociedade tradicional, é inimigo quem pensa e professa de maneira diferente da tribo.
Outra diferença entre as duas posições é que, no primeiro caso, é quase impossível reconhecer adversários; um mito de paz universal surge como corolário do princípio legal pelo qual toda diferença é permitida. Nessa posição, somos avessos a conflitos e, eventualmente, combatentes envergonhados: combater contra quem, se, por lei, todos podem ser "dos nossos"?
No segundo caso, é fácil responder a essa pergunta: trata-se de combater contra quem, de fato, não é "dos nossos", ou seja, contra quem é inimigo de nossos valores.
Como me situo? Pois é, muitos anos atrás, militei a favor da ideia de que os partidos com vocação totalitária devem ser proibidos numa democracia que eles têm o intento de abolir.
A lista de Jacqui Smith me tocou. Ela mostra que, para reconhecer valores que valem a pena defender, não é necessário se identificar com um grupo ou uma facção: nossa cultura basta e sobra.
Além disso, a leitura da lista me fez pensar em minha tia Rosalia, que sempre me dizia: "A inteligência humana tem limites; a estupidez não tem".

EDUCAÇÃO


É notório que, talvez por nunca ter frequentado uma universidade (mesmo depois de rico), o Presidente South Park pratica uma política educacional que confunde alhos com bugalhos. Ou, sendo mais preciso, confunde educação básica com educação acadêmica.


A educação básica (que no Brasil é dividida em 4 blocos, chamados creche, educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) deveria dar-se dos 0 aos 18 anos (ou 20 anos, na minha opinião particular), ser provida pelo Estado com acesso universal e gratuito, manter alunos (e pais, quando viável) fortemente engajados no processo, e capacitar os alunos a:
1 - comunicarem-se, lerem e escreverem com fluência e clareza tanto na sua língua nativa como em línguas universais;
2 - fazerem análises lógicas, quantitativas e gráficas elementares;
3 - refletirem e discutirem com pluralidade e sem dogmatismos sobre temas abstratos intrínsecos às inquietações humanas (filosofia, psicologia, artes, ideologias, religiões);
4 - terem consciência de seus próprios corpos e cuidarem para manterem-nos sãos;
5 - compreenderem os princípios fundamentais da saúde humana;
6 - conviverem com familiaridade com aspectos da vida contemporânea, tais como computadores, trânsito e finanças;
7 - compreenderem aspectos gerais da sociedade em que vivem e das demais sociedades (com as quais sempre podem ter contato algum dia), incluindo suas histórias, culturas e leis;
8 - compreenderem os princípios fundamentais do funcionamento da natureza (com o cuidado para que não se percam em minúcias irrelevantes e excessivamente complexas);

A educação acadêmica é outra conversa, completamente distinta! Deve voltar-se para PRODUÇÃO (e compartilhamento) de conhecimento, e não mais para "alfabetização" (no sentido completo da palavra) de um povo. É assunto para a pasta da "ciência e tecnologia", e não mais para a "educação, esporte e cultura". No blablablá dos economistas, teria a ver com "inovação e crescimento", e não com "equidade e desenvolvimento". E, acima de tudo, não deveria jamais ser encarada como "passaporte para o mercado de trabalho". Academia é lugar para quem tem interesse e perfil para produzir ciência. Não precisa ser universal como deve ser a educação básica. (Na verdade, nem deve, dadas suas exigências de interesse - já por pessoas adultas - e perfil).

No Brasil, e suponho que na América Latrina em geral, criou-se ao longo das décadas (ou dos séculos) a cultura infeliz de transformar a educação acadêmica em "entrada para o mercado", o que a empurra para o Estado com caráter de universalidade e gratuidade e, assim, desvirtua tanto a própria educação acadêmica quanto a mais essencial responsabilidade do Estado (para com a educação de base). No governo do Presidente South Park, um dos acertos da política educacional tem sido a ampliação de cursos técnicos, o que alivia um pouco a cultura estapafúrdia que foi criada. Mas, pra contrabalançar, ele cria uma tal "Universidade para Todos", que parece ter o objetivo quixotesco de dar diplomas acadêmicos a uma população de 190 milhões de pessoas, sendo que 180 milhões delas não tiveram educação de base como deveriam (nem verão seus filhos terem, já que não há nem esboço de encaminhamento da revolução que a educação de base no Brasil requer).